Em 2004, o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de Michel Gondry, despertou curiosidade ao imaginar um mundo onde memórias dolorosas pudessem ser apagadas.

A trama, estrelada por Jim Carrey e Kate Winslet, levantou questões sobre identidade e o impacto das lembranças em nossa vida. O que poucos sabiam é que a ciência já estava trilhando um caminho semelhante ao da ficção.
Como o sono modula nossas memórias
Desde a década de 1960, pesquisadores investigam o papel do sono na organização da memória. O psicólogo Ulric Neisser propôs que, enquanto dormimos, nosso cérebro filtra informações, reforçando o que é importante e descartando o que não faz sentido.
Anos depois, o cientista Francis Crick sugeriu que o sono não apenas consolidava, mas também poderia modular lembranças. A neurociência avançou e descobriu que o sono NREM (fase de sono profundo) desempenha um papel-chave na organização das memórias. Durante esse período, o cérebro decide quais informações manter e quais descartar, tornando essa fase essencial para o aprendizado e o processamento emocional.
Recentemente, cientistas da Universidade de Hong Kong aplicaram a técnica de TMR para investigar a possibilidade de atenuar o impacto de memórias negativas, estendendo o conceito de influência do som na consolidação de memórias.
No experimento, 37 voluntários com cerca de 20 anos foram expostos a 48 imagens negativas, cada uma associada a palavras sonoras gravadas. Durante o sono, as imagens negativas foram armazenadas no cérebro juntamente com os sons correspondentes.
No dia seguinte, os participantes visualizaram imagens positivas e tentaram associar algumas das palavras sonoras gravadas às novas imagens. Algumas imagens positivas foram vinculadas aos mesmos sons das imagens negativas anteriores.
Na segunda noite, os sons foram reproduzidos enquanto os participantes dormiam. Questionários realizados após o experimento revelaram que os participantes tiveram mais dificuldade em lembrar as imagens negativas que foram “sobrescritas” pelas imagens positivas, sugerindo que a técnica de TMR poderia ajudar a reduzir o impacto de memórias negativas.
Traumas e memórias antigas
Apesar de promissores, os resultados obtidos nos estudos de TMR foram todos realizados em ambientes laboratoriais, o que apresenta algumas limitações para a aplicação da técnica na vida real. Uma das principais dificuldades é que os traumas geralmente não têm sons, o que inviabiliza a aplicação direta da TMR.
No entanto, novas pesquisas podem explorar abordagens alternativas (como técnicas de regressão ou hipnose), para acessar e resgatar essas memórias e, desse modo, associá-las a sons específicos no presente.
Reativando memórias com som
Outro estudo, liderado por Ken Paller, mostrou que sons podem reativar memórias durante o sono. Os participantes aprenderam a associar imagens a efeitos sonoros, como um gato com o som de "miau". Enquanto dormiam, alguns desses sons foram reproduzidos.
Ao acordarem, eles lembravam melhor das imagens relacionadas aos sons repetidos. Isso sugere que o cérebro pode reforçar ou modificar memórias através de estímulos externos.
Questão ética

Apagar memórias pode ter uma série de consequências complexas na malha neuronal do indivíduo, o que gera preocupações sobre os impactos dessa prática. Muitos preferem, por isso, usar o termo “reconsolidação de memória”: esse processo – em tese mais controlado – “reprioriza” ou “resensibiliza” as memórias, buscando reduzir seus efeitos negativos, mas sem eliminar a memória em si.
Ainda assim, este tipo de abordagem seria permitido apenas para casos com indicação clínica confirmada, garantindo que apenas pessoas com condições específicas e após uma avaliação cuidadosa fossem tratadas.
Embora demonstrem potencial, os estudos realizados até o momento ainda são limitados a ambientes laboratoriais.
É crucial, porém, que essa tecnologia seja utilizada com cautela para evitar abusos.
Nesse contexto, o potencial de alterar memórias para além dos traumas, com fins ideológicos ou políticos, levanta questões éticas e morais que não podem ser ignoradas.
Qualquer avanço nesse campo deve ser acompanhado de rigorosas regulamentações para garantir que as intervenções na memória sejam feitas apenas quando clinicamente indicadas e com o consentimento consciente dos indivíduos.
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